Lisboa — Um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que completa 24 anos neste mês, o economista José Roberto Afonso, professor do IDP e vice-presidente do Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe), diz que não há riscos de desajustes nas contas públicas e assinala ver exageros nas críticas dos agentes econômicos à política fiscal do governo Lula. Para ele, está faltando equilíbrio no debate. “Antes, diziam que, com a posse de Lula, o mundo cairia. Sabemos que não aconteceu isso e ainda foram aprovadas mudanças legislativas, a equipe econômica se mostrou serena e o mercado estava em lua de mel com eles”, afirma.
Ele reconhece, porém, que há muito o que avançar na gestão dos gastos públicos e, inclusive, na LRF, que continua incompleta. Na avaliação de Afonso, é preciso impor um limite para o endividamento da União e criar o Conselho Fiscal, que, certamente, evitaria o embate que se vê hoje entre o Palácio do Planalto e o Congresso em torno da desoneração dos 17 setores da economia que mais empregam. A disputa foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e aprofundou as fissuras entre o Executivo e o Legislativo. “Com o Conselho, composto por representantes de todos dos Poderes, haveria mais negociação e pactuação”, acredita.
O economista ressalta, ainda, ver um amplo espaço para o uso da inteligência artificial a fim de controlar as despesas do governo. Segundo ele, essa tecnologia ajudaria muito no combate a fraudes e aos desperdícios se houvesse a fusão do Cadastro Único com as bases de dados do Bolsa Família, da Receita Federal, do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). “Ainda sonho com o dia em que poderemos marcar consultas no SUS, fazer matrículas em escolas, acompanhar as notas dos alunos e mesmo denunciar um crime por meio do celular”, frisa. “Basta, para isso, vontade política, pois técnicas há de sobra.”
O uso da inteligência artificial por governos, Judiciário e Legislativo será tema de um seminário promovido pelo Fibe nesta sexta-feira (03/05), em Madri, Espanha, no auditório do histórico prédio da Casa América, uma pérola da arquitetura. “Queremos discutir as transformações que estão se dando na economia, na sociedade e não apenas na tecnologia, e como é preciso ajustar, principalmente, as instituições, as leis e as regras que, por natureza, vão atrás das mudanças e precisam ser adequadas a esse novo mundo”, explica Afonso. “O objetivo é contribuir para a proteção da democracia”, complementa.
Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio pelo economista.
Há razão para a atual comoção em relação às contas públicas? Há riscos reais de desajustes?
Não. Na minha opinião pessoal, há um exagero dos agentes econômicos. Antes, diziam que, com a posse do presidente Lula, o mundo cairia. Sabemos que não aconteceu isso e ainda foram aprovadas mudanças legislativas, a equipe econômica se mostrou serena e o mercado estava em lua de mel com eles. O Brasil está precisando de muito equilíbrio na forma como debate a política fiscal. Nem oito, 80. Temos de sair dessa armadilha, nem tudo está errado, mas, por certo, há muito o que melhorar. Todos ajudariam mais apresentando propostas concretas e imediatas para melhorar a produtividade do gasto público, fazer mais e melhor com menos recursos, pois emenda constitucional pouco resolve. O mesmo vale para o lado da receita, pois se insiste na implantação de impostos analógicos quando o mundo já virou digital.
A Lei de Responsabilidade Fiscal completa 24 anos neste mês. Como um dos criadores dessa legislação, que avaliação faz?
Há muito o que comemorar. Melhoramos muito na administração pública, ainda que não seja uma panaceia. Agora, a lei segue incompleta em aspectos cruciais, como a adoção de um limite para a dívida federal, que representa mais de 90% do endividamento total do país, e a criação do conselho de gestão fiscal, que poderia atenuar confusões institucionais, como no caso das desonerações da folha de pagamento, ao juntar, no mesmo espaço, membros de diferentes níveis de governo e de Poderes. Precisamos de mais negociação e pactuação e menos emendas constitucionais e ações no Supremo Tribunal Federal. Também necessitamos urgentemente aprovar a revisão da Lei 4.320, de 1964. Ou seja, aprovamos Orçamentos e fazemos contabilidade pública como há 60 anos, e nenhum governo, nenhum parlamentar, nenhuma entidade profissional, ninguém do mercado financeiro acha isso estranho. É a cara dos extremos do Brasil: como aplicar uma lei moderna, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, quando as contas são apuradas com base em regras de mais de meio século?
De que forma a tecnologia pode ajudar na questão fiscal?
A tecnologia será decisiva nessa questão. De imediato, quando se fala desse tema, o que de mais imediato vem à cabeça é a cobrança de impostos, que, no caso brasileiro, avançou muito. Na fiscalização, a tecnologia está sendo usada com sucesso. Hoje, você desembarca no aeroporto e a Receita Federal sabe tudo sobre você, por meio do peso das malas, do número de vezes que viaja. Esses mecanismos de controle precisam chegar à área fiscal, na gestão da dívida pública. Daqui a pouco, o Tesouro Nacional não precisará mais de meia dúzia de bancos intermediários, os dealers, para realizar operações. Futuramente, estará emitindo títulos em criptomoedas, tudo eletronicamente. Na despesa pública, tem um mundo de oportunidades para fazer mais e melhor, com menos recursos. O governo tem um potencial enorme quando se fala em redução de gastos. Mas é preciso ter vontade política para adotar a tecnologia. É inacreditável que o banco de dados do Bolsa Família não esteja integrado com o banco de dados de servidores públicos e o banco de dados da Receita Federal. Pode-se ter uma rede integrada de atestados, seja de certidão de nascimento, seja atestado de óbito. Registrou-se um óbito, o INSS tem de ser avisado um segundo depois, pois não pode alguém morrer e outra pessoa ficar recebendo o benefício durante meses ou anos. São muitas coisas microeconômicas, como o combate a fraudes, mas que, juntas, proporcionam um resultado macroeconômico muito importante.
A inteligência artificial é uma ameaça à democracia ou pode ser uma aliada?
Acho que ambas. Sem regulação, é uma ameaça, não tenho dúvida. Há anos ou décadas, o político saía com um carro de som ou mesmo com um alto-falante em cima de um jegue pela cidade pedindo votos. Nesse processo, podia até ter desinformação, mentiras contra os adversários. Mas, com o uso da inteligência artificial, é difícil saber o que é verdade ou irreal. Todos nós sabemos que, hoje, a internet é capaz de colocar alguém falando com a sua voz, com a sua imagem, algo que você não falou ou algo que você não pensou. Por isso, a regulação das redes sociais, da inteligência artificial, é vital. Vemos que, nessa discussão, a Justiça Eleitoral está muito mais avançada que o Congresso e até que outros países. Agora, tudo passa por esclarecer a sociedade sobre a importância da regulação e como ela ganha com isso.
Esse tema, por sinal, será debatido nesta sexta-feira (03/059), em Madri. Qual o objetivo?
O nosso objetivo com esse seminário é abrir um novo ciclo de debates no âmbito do Fórum de Integração Brasil Europa. Queremos discutir as transformações que estão se dando na economia, na sociedade e não apenas na tecnologia, e como é preciso ajustar, principalmente, as instituições, as leis e as regras que, por natureza, vão atrás das mudanças e precisam ser adequadas a esse novo mundo. Estamos focados na revolução digital e na democracia. A motivação é simples e inevitável. Neste ano, mais da metade da população mundial vai às urnas em mais de 70 países. E pode ser que a disputa descambe para atos que nem sempre, digamos assim, são eticamente ou moralmente adequados. Essas inadequações ou erros passaram a uma escala muito maior, globalizada, sofisticada, por conta da inteligência artificial.
Ou seja, as discussões vão se voltar para esse mundo novo da inteligência artificial?
Exatamente. Precisamos entender como lidar com a inteligência artificial nas eleições, na democracia, nas instituições de Estado. Necessitamos ter leis e regulamentos para lidar com essas novas tecnologias. A União Europeia aprovou um novo ato. O Brasil está discutindo mais de um projeto sobre o tema, sendo que um específico está no Senado. O debate deve envolver o funcionamento do governo, da Justiça, do Legislativo, que são instituições básicas da democracia e passaram, nos últimos tempos, a se reunir cada vez mais em caráter remoto. O Congresso brasileiro está votando até emenda constitucional por formato remoto, o Judiciário, idem em relação aos processos, até a Suprema Corte. No âmbito do Executivo, isso ocorreu com a prestação de serviços.
Nem tudo, porém, pode ser remoto. Não há inteligência artificial que dê jeito.
Com certeza. Vejamos o caso da diplomacia. Tem muita gente que atua nessa área da geopolítica e comenta que a ausência do cafezinho entre chefes de Estado, só dois caras dentro da sala e mais os tradutores de confiança de cada um deles, esteja ampliando a facilidade com que se está caminhando para guerra e dificultando a negociação de soluções para a paz. Nesse caso, fica difícil o caráter remoto.
Como está o Brasil em relação ao mundo no contexto da inteligência artificial?
Quando olhamos do ponto de vista do governo, do Judiciário e do Legislativo, ainda estamos muito atrasados na regulação das redes sociais e da própria inteligência artificial. Mas, o Brasil, sabemos, é oito ou 80. O país está muito avançado em algumas questões e, ao meu ver, muito atrasado em outras. O melhor retrato dos avanços são as urnas eletrônicas. Nenhum país do mundo consegue fazer uma eleição do porte, do tamanho da eleição brasileira, com a rapidez e a exatidão que o Brasil tem.
Nesse ponto, porém, o grande diferencial do Brasil é que as eleições estão sob a responsabilidade da Justiça.
Sim. Isso é um detalhe muito importante, que pouca gente sabe, e que não é comum em outros países. No Brasil, a Justiça Eleitoral julga e executa. Em Portugal, por exemplo, a eleição é comandada pelo Ministério da Administração Interna. Agora, não é apenas a Justiça Eleitoral que recorreu à tecnologia para aprimorar a sua atuação. A Justiça do Trabalho, que era a mais complexa e é a que tem mais ações, está completamente diferente do que era antes de adotar a inteligência artificial e as ações remotas. Então, eu reputo o Judiciário e o Legislativo brasileiros como entre os mais modernos do mundo.
Onde entra o Executivo nesse quadro?
Creio que o Executivo está correndo atrás, está muito avançado em algumas questões, como nas declarações do Imposto de Renda, totalmente digital. Na educação, na saúde e na segurança pública, está extremamente atrasado no uso da tecnologia em favor do cidadão. Não é possível que o governo despreze o Cadastro Único, que deveria ser dos cidadãos, dos estudantes, dos pacientes. E, posso garantir, não falta tecnologia nessas áreas. O que está faltando é decisão política. O investimento também é baixo. Aliás, é preciso ressaltar que o Exército brasileiro tem um sistema muito sofisticado para acompanhamento on-line de obras, que poderia ser replicado para todo o setor público. Por que isso só está no Exército e não vale para todo o governo federal? É comum haver inovações na área da defesa que, depois, vão extrapolar para fora do mundo militar. Devemos lembrar que a internet nasceu como uma rede de uso dos militares norte-americanos.
Os governos são resistentes às mudanças?
Sim, e, por isso, os debates são muito importantes. Acredito que sentar, conversar e ouvir as posições de cada um, naturalmente, ajuda a encaminhar para mudanças. Eu, como economista, ainda mais da área fiscal, creio que, dada a expertise brasileira, o país sempre avança muito em momentos de crise. Aliás, uma particularidade do Brasil é saber lidar com coisas abruptas. Um ponto fora da curva nesse histórico foi a pandemia da covid, uma desgraça que resultou na morte de muita gente. Mas, por exemplo, o Congresso continuou funcionando em caráter remoto, assim como a Justiça. Deputados e senadores votaram o Orçamento para o enfrentamento da crise sanitária. Por isso, digo que, por incrível que pareça, o Congresso e o Judiciário respondem mais rápido do que o Executivo. Mas, no caso do Executivo, destacaria duas situações. Somos um país extremamente descentralizado. Isso é bom e ruim. O lado bom é que temos o Estado mais próximo do cidadão. Os estados e os municípios são os grandes responsáveis por educação, saúde, segurança pública. O lado ruim é o fato de o governo federal não atuar mais e melhor no papel de planejar, coordenar e liderar. Isso ele abdicou. Acho até que a administração Lula está tentando retomar isso. É importante ter mais órgãos colegiados para que o governo federal se articule com estados e municípios e faça as mudanças necessárias, que só serão mais profundas e mais rápidas diante das crises e da pressão dos eleitores.
Entre os estados, as formas de atuação são muito distintas. Por quê?
Nessa discussão, gosto sempre de citar um caso exitoso que ocorreu durante a pandemia. Diante das restrições impostas pelas autoridades sanitárias, um estado cruzou as notas eletrônicas geridas pela Secretaria de Fazenda e pode identificar os fluxos para farmácias, postos de combustíveis, supermercados. A partir dali, o governo passou a divulgar à população a melhor hora para ir a esses estabelecimentos, quando havia menos pessoas. Muita gente pode achar que isso feito por São Paulo. Não, foi por Rondônia, um estado pequeno. Isso é só um dentre inúmeros exemplos que temos país afora sobre avanços tecnológicos. Sabemos que várias prefeituras estão tentando acabar com o papel, com tudo se resolvendo pela internet. Eu sonho com o dia em que poderemos marcar consulta médica no SUS pelo celular, realizar matrículas pelo celular, acompanhar o desempenho do aluno pelo seu celular, fazer rapidamente uma denúncia de um assalto. E isso não ocorre por falta de capacidade técnica, o que há de sobra. É preciso organizar e ter vontade política para fazer as mudanças.
Como está vendo as eleições municipais? O que pesará nos votos dos eleitores?
A meu ver, há muito tempo, a eleição municipal virou uma grande eleição do gestor local. Não sou cientista político, mas o cara de São Paulo, do Rio de Janeiro, do Recife não vota pensando em Brasília. Quer saber o que a cidade dele lhe oferece de bom. Ele julga o prefeito, que quer ser reeleito ou está indicando alguém para sucedê-lo. Esse eleitor quer saber como a vida dele vai melhorar concretamente. Acredito que isso vai mover mais mudanças no Brasil.
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