A distribuição de dividendos (remuneração aos acionistas com parcela do lucro) pela Petrobras virou alvo de intensa discórdia, após a empresa ampliar fortemente esses pagamentos em 2022 e 2023, período em que se destacou como a petroleira que mais pagou dividendos no mundo (US$ 57,6 bilhões).
De um lado, parte do governo e grupos que defendem o papel central da estatal no desenvolvimento do país querem que a empresa reduza o pagamento aos acionistas para ampliar seus investimentos, por exemplo, com a construção de novas refinarias (unidades que transformam óleo bruto em combustíveis) e fontes alternativas de energia.
De outro lado, analistas de mercado e acionistas da empresa defendem que a empresa mantenha o alto patamar de distribuição de dividendos, o que torna suas ações mais atrativas. Eles argumentam que a empresa já tem um nível elevado de investimentos e que certos projetos de interesse do governo, como as refinarias, não seriam lucrativos.
Em meio a essa disputa, os acionistas da empresa aprovaram nesta quinta-feira (25/04) distribuir R$ 21,95 bilhões em dividendos extraordinários, referentes aos lucros de 2023, depois que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva tentou bloquear a liberação desses recursos em março.
Os dividendos extraordinários são aqueles pagos além do mínimo previsto em regras de mercado e da própria empresa. A Petrobras já havia anunciado um total de R$ 72,4 bilhões em dividendo ordinários referentes aos ganhos de 2023, parte dos quais já foi paga no ano passado.
A aprovação do pagamento extra agora reflete um recuo do Palácio do Planalto, após as ações da estatal levarem um tombo de 10% em um dia, no mês passado, devido à insatisfação do mercado com a decisão inicial.
Embora a Petrobras seja uma companhia de capital aberto, a União mantém controle acionário da empresa e, por isso, é determinante na decisão de liberação desses recursos.
No entanto, a mudança de rumo não deixa de ter um lado positivo para o governo. Como maior acionista da Petrobras, a União deve receber R$ 6 bilhões dos dividendos extras liberados, valor que pode contribuir para reduzir o rombo nas contas federais.
Nos últimos dois anos, os valores recebidos somaram R$ 83,9 bilhões.
Por que Petrobras se tornou a maior pagadora?
Levantamento do especialista em dados financeiros Einar Rivero, da Elos Ayta Consultoria, para a BBC News Brasil, mostra que os dividendos distribuídos pela Petrobras tiveram forte alta nos últimos três anos.
A estatal pagou R$ 72,7 bilhões em 2021, R$ 194,6 bilhões em 2022, e R$ 98,2 bilhões em 2023.
Considerando os valores em dólar, a empresa aparece como a maior pagadora de dividendos entre as grandes petroleiras nos dois últimos anos, quando os desembolsos somaram US$ 57,6 bilhões, superando em muito as outras três maiores pagadoras no período, como Exxon Mobil (US$ 29,8 bilhões), Chevron (US$ 22,3 bilhões) e Petrochina. (US$ 20,4 bilhões).
Os valores contabilizados por Einar Rivero representam o que de fato saiu do caixa da empresa no período, em dividendos e juros sob capital próprio (um outro tipo de dividendo). Parte do que é pago em um ano é referente aos ganhos do exercício anterior, e assim sucessivamente.
A quantia total paga de 2021 a 2023 (R$ 365,5 bilhões) é seis vezes maior do que tudo que foi distribuído entre 2010 e 2020 (R$ 59,3 bilhões).
O aumento recente reflete a maior lucratividade da empresa — em momento de disparada da cotação do petróleo — e a decisão de guardar uma parte menor desses ganhos para investimentos.
A Petrobras registrou seus dois maiores lucros da história em 2022 (R$ 188,3 bilhões) e 2023 (R$ 124,6 bilhões). Nesse período, investiu quase R$ 25 bilhões em 2022 e R$ 42,2 bilhões em 2023.
São números expressivos, mas bem abaixo do registrado entre 2010 e 2015 (média anual de R$ 77,1 bilhões em investimentos), durante o governo Dilma Rousseff (PT).
Foi um período marcado por fortes investimentos para a exploração das reservas de petróleo no pré-sal, mas também por projetos controversos, como obras com desvios de recursos, escândalo revelado pela operação Lava Jato.
Para o engenheiro químico Felipe Coutinho, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), esses altos investimentos feitos anos atrás se refletem na alta dos lucros hoje. Na sua visão, a política de reduzir investimentos e maximizar o pagamento de dividendos não é sustentável para a empresa.
Ele nota que, ao mesmo tempo que os dividendos pagos são os maiores do mundo, os investimentos dos últimos anos ficaram abaixo das principais concorrentes.
“O dividendo que é distribuído hoje, o lucro que é gerado hoje, é resultado do investimento do passado”, afirma.
“Então, se você não faz investimento na proporção necessária para encontrar petróleo na mesma medida que você esgota (as reservas), se não investe para agregar valor ao petróleo com refino, transporte e comercialização, se não investe na petroquímica, se não investe no que vai te gerar receita futura, na verdade você compromete o futuro da empresa”, argumenta.
Críticos da gestão da empresa durantes os primeiros governos petistas reconhecem a importância dos investimentos para exploração do pré-sal, mas avaliam que outros projetos tocados pela Petrobras seguiram mais a visão política do governo, do que uma avaliação do que seria a forma mais rentável de aplicar os ganhos da companhia.
Para esse grupo, decisões erradas de investimentos, o controle dos preços dos combustíveis (quando a Petrobras vende gasolina e diesel a preços menores do que os praticados internacionalmente) e os impactos dos escândalos de corrupção são fatores que explicam os quatro anos em que a empresa registrou prejuízos, somando mais de R$ 70 bilhões em perdas de 2014 a 2017.
“Em 2015, devido a todos os escândalos, a Petrobras não pagou dividendos. E em 2016 e 2017, o valor somado foi de R$ 777 milhões, o que para a Petrobras é nada”, nota Rivero.
Na sua avaliação, os governos Michel Temer e Jair Bolsonaro promoveram a retomada dos dividendos, com um patamar razoável de investimento, com média anual de R$ 28 bilhões entre 2017 e 2022.
“Poderia se deduzir (dos números): uma empresa saneada, posteriormente a todos os escândalos, conseguiu investir e, além de investir, pagar ainda dividendos”, afirma.
‘Dividendos altos refletem riscos maiores’, diz professor
Para o professor de finanças Rafael Schiozer, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), as ações da empresa desabaram em março porque os acionistas entenderam que o governo estaria segurando caixa para fazer “investimentos de cunho político, que não se pagam, com retorno menor que o custo de capital da empresa”.
“São investimentos fora da área core (principal negócio) da Petrobras, em que a Petrobras realmente é muito competente, que são a exploração e produção no pré-sal. Por exemplo, a Petrobras não tem retorno muito bom nesses projetos de refino. Os últimos, inclusive, destruíram valor (da empresa)”, argumenta.
Para Schiozer, o que é insustentável não é a empresa deixar de investir, mas alocar recursos em projetos que não são rentáveis. Na sua avaliação, os recordes em pagamento de dividendos não são um problema e é natural que a Petrobras pague mais que suas concorrentes.
“Obviamente, uma petroleira num mercado emergente tem que dar retorno maior para o acionista, porque o risco é muito maior. E, no caso da Petrobras, mais ainda, porque ainda tem o risco de influência política”, disse.
Na visão do economista Adilson de Oliveira, professor aposentado da UFRJ, a distribuição de dividendos é de interesse da empresa.
“Manter um nível de dividendos razoável é importante para que as pessoas continuem investindo na Petrobras, continuem comprando ações da Petrobras”, afirma.
Ele diz que os pagamentos elevados refletem a alta lucratividade da empresa no pré-sal.
“A Petrobras passou a gerar dividendos extraordinários porque o custo de produção da Petrobras no pré-sal é na faixa dos US$ 25 o barril, e ela vende isso há US$ 80 agora, mas chegou a vender a US$ 90”, ressalta.
“Então, imagina a margem de lucro monumental que a empresa tem, e o governo, evidentemente, gostaria de se apropriar desses recursos para seus projetos específicos, e não necessariamente os projetos da empresa”, acrescenta.
Interesses dos acionistas x interesses do país?
Por trás do embate dos dividendos, há duas visões sobre o papel da Petrobras. Há segmentos da sociedade e do governo que entendem que a estatal, maior empresa brasileira, deve ser usada para alavancar o crescimento do país e garantir segurança energética.
Já outros entendem que a companhia, ao ter ações em bolsa, deve ser gerida com foco em resultados. Na visão desse grupo, o bom desempenho financeiro da empresa traz naturalmente reflexos positivos para a economia e o governo, como a geração de empregos e o pagamento de impostos.
A discórdia sobre os investimentos em refinarias reflete essas diferentes visões.
Para o engenheiro químico Felipe Coutinho, presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET), é fundamental que a empresa invista no setor, para reduzir a dependência do país da importação de combustíveis. Hoje, a estatal exporta óleo bruto e importa derivados.
Além disso, ele refuta que a estratégia de investir em refino não seja rentável.
“O resultado do segmento de refino, transporte e comercialização (de combustíveis) varia de acordo com o preço do petróleo. É uma questão contábil. Quando o preço do petróleo está relativamente baixo, a Petrobras, como qualquer outra empresa, registra resultados contábeis maiores nesse segmento”, afirma.
“E quando o preço do petróleo está relativamente alto, as empresas registram um desempenho contábil maior na exploração e produção (de óleo bruto). Então, a atuação integrada da Petrobras visa fazer com que a empresa seja rentável e sustentável independente da variação do preço”, acrescenta.
O diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Pedro Rodrigues, por sua vez, é mais um que crítica os investimentos em refinarias. Na sua visão, porém, o problema não está apenas nesse setor.
Na sua visão, também há projetos ruins na área de transição energética, como a criação de sete usinas eólicas offshore (no mar), em diferentes Estados ao longo da costa brasileira.
“O problema da Petrobras, é que a cada quatro anos (com a mudança de governo), o rumo da empresa muda da água para o vinho. Eu vejo que os investimentos que a nova direção tem indicado tem muito mais retorno político do que retorno econômico”, avalia.
“Por exemplo, o volume de dinheiro indicado para a construção de eólicas offshore. Eu nem sei se Siemens tem turbina suficiente para atender esse volume (de energia), ou se o Brasil tem demanda suficiente para esse volume. Então, é uma coisa que não faz sentido”, critica.
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