Por que o contexto de 1964 não se repetiu na tentativa golpista de 2023

Neste fim de semana completam-se seis décadas de uma das maiores rupturas institucionais vivenciadas pelo Brasil, o golpe de 1964 – que os adeptos preferem chamar contrarrevolução. Entre 31 de março e 1º de abril daquele ano, comandos militares de todo o país, em aliança com empresários, políticos de oposição e apoio velado dos Estados Unidos, se rebelaram e destituíram o presidente João Goulart, o Jango, do PTB.

Alegaram que precisavam conter uma revolução comunista prestes a ocorrer no país. Na sequência, as Forças Armadas assumiram o controle, prenderam, cassaram e expurgaram do serviço público milhares de brasileiros (alguns acusados de subversão, outros, de corrupção). E, depois, preencheram os principais cargos estatais com seus quadros. Os militares permaneceram por 21 anos no comando da nação, sem eleições presidenciais diretas. Nesse período, algumas centenas de opositores do regime foram executados.

A redemocratização veio em 1985, e, desde então, o momento de maior instabilidade institucional no país ocorreu entre 2022 e o começo de 2023, das vésperas da eleição presidencial até logo após a posse do eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foram mais de dois meses em que apoiadores do presidente derrotado na tentativa de reeleição, Jair Bolsonaro (PL), tentaram impedir Lula de assumir e conduzir o governo.

Foi um momento em que quase ocorreu outra ruptura democrática, concordam especialistas no assunto (de direita e de esquerda), ouvidos pela reportagem. Foram entrevistados, além de estudiosos, protagonistas de ambos os momentos históricos, com o objetivo de conferir se há similaridade entre o recente tumulto político vivido nas últimas eleições e o terremoto ideológico que desembocou na derrubada do governo Jango em 1964. Os entrevistados admitem que são várias as semelhanças, mas as disparidades entre os dois episódios são maiores do que as equivalências.

A reportagem conversou com o jornalista Flávio Tavares, que vivenciou como repórter os acontecimentos de 1964, virou opositor da ditadura militar, ingressou numa guerrilha de esquerda, foi preso três vezes pelas Forças Armadas, exilado em três países, preso novamente no Uruguai (durante a ditadura naquele país) e libertado e anistiado por pressão internacional.

Falou também com o historiador, comentarista político e economista Marco Antônio Villa, autor de dois livros sobre o regime militar. E com Luiz Ernani Caminha Giorgis, coronel de Infantaria, formado na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), na PUCRS (em História) e presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil/Seção RS.

Ouvimos ainda outros oficiais que costumam organizar atos em lembrança aos fatos de 1964, mas que só opinam mediante anonimato, pelas restrições em suas carreiras. Até porque o presidente Lula vetou comentários públicos ou celebrações dos 60 anos da derrubada do governo Jango por parte de militares, numa tentativa de evitar polêmicas na caserna. Todos os entrevistados concordam que a maior diferença entre 1964 e 2022 está no leque de forças dispostas à ruptura institucional, que foi muito maior nos anos 1960 do que agora.

Jango, cabeça de um governo com matizes trabalhistas-esquerdistas, sofreu oposição da maior parte das Forças Armadas, do clero, de parte do Congresso, da maior parte da imprensa e de muitas entidades empresariais. A seu favor estavam os sindicatos de trabalhadores, parlamentares de esquerda, alguns militares de baixa patente e entidades de classe. Já em 2022, o clero, a imprensa, as multinacionais e até a cúpula das Forças Armadas não apoiaram o golpe ambicionado por seguidores do então presidente Bolsonaro.

— A principal diferença de épocas é que o golpe de 1964 foi produto da Guerra Fria, a disputa entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, o principal acontecimento pós-Segunda Guerra Mundial. Veio dos Estados Unidos até um padre da Igreja Católica, o Padre Peyton, que foi o grande pregador daquela Marcha com Deus pela Família e Liberdade. Era uma época em que a Igreja tinha muito mais influência do que hoje e era muito mais atrasada na percepção do mundo. Já em 2022 Bolsonaro tentou recriar esse anticomunismo, mas, como toda criação artificial, não funcionou. Já dizia o teórico comunista Karl Marx: a história só se repete como farsa — analisa Tavares.

A seguir, dividido em temas, os dois cenários estão postos para comparação.

O comando da nação dividido entre polos opostos

A crise de 1964 na verdade começa no final de 1960, quando o Brasil elege Jânio Quadros (coligação PTN-UDN) para presidente. Ele tinha uma plataforma de matizes conservadores, cujo símbolo era uma vassoura, com a qual prometia “varrer a corrupção getulista”. Acontece que seu vice era o trabalhista e getulista Jango (PTB). Essa contradição ideológica acontecia porque presidente e vice eram votados separadamente, o que levou ao poder dois homens com plataformas quase antagônicas.

Ainda em 1961 ocorreu um impasse, porque Jânio renunciou ao cargo (supostamente, porque pretendia retornar nos braços do povo, com mais poderes). No vácuo institucional, militares anticomunistas tentaram impedir que Jango assumisse.

O político petebista estava em viagem à China e só conseguiu retornar ao Brasil para assumir graças a seu cunhado, o então governador gaúcho Leonel Brizola (PTB), que liderou o Movimento pela Legalidade (convocando e concentrando multidões para impedir um golpe de Estado).

Deu certo, mas o janguismo acabou governando com minoria parlamentar (depois que a maior parte do PSD getulista ingressou na oposição) e contrariedade de grande parte do empresariado.

Marco Antônio Villa considera que não havia nenhuma ideia de implantar socialismo ou comunismo por parte do governo:

— Isso é delírio, mas era o fantasma da época. Assim como o Jango nunca foi comunista e o Brizola nunca foi comunista. Isso aí é líquido e certo. Eram nacionalistas.

Blocos ideológicos antagônicos

O cenário pré-1964 era de radicalismo ideológico, espelhado na Guerra Fria que antagonizava o capitalismo norte-americano e os partidos comunistas de inspiração russa ou chinesa.

A esquerda, no Brasil, estava abrigada na Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), que reunia partidos Trabalhista, Socialista, os comunistas (na clandestinidade) e tinha apoio da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A maior liderança era Brizola, que a partir de 1963 tornou-se deputado federal pelo Rio de Janeiro.

No Sul, Brizola contava com o apoio do Grupo dos 11, célula de civis que apoiavam o trabalhismo e se mostravam até dispostos a pegar em armas. Mais de 58 mil pessoas teriam aderido a esses pelotões, que jamais chegaram a atuar, porque foram sufocados pelos militares a partir de 31 de março.

Já a direita estava aglutinada em torno da União Democrática Nacional (UDN, partido antigetulista), de parte do PSD getulista, do Partido Libertador (PL, maragato) e de entidades como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), a Organização Paranaense Anticomunista (Opac), além da Escola Superior de Guerra (ESG), das Forças Armadas.

O militar e historiador Caminha Giorgis lembra que alguns generais faziam a ponte das Forças Armadas com o empresariado contrário a Jango. Um dos líderes do Ipes era o general da reserva Golbery do Couto e Silva, veterano da II Guerra Mundial. No Ibad, pessoa de ligação com as Forças Armadas era o general reformado Sebastião Dalísio Menna Barreto. Na ESG, foi importante organizador o general Affonso de Albuquerque Lima, também veterano da Força Expedicionária Brasileira.

– O complexo Ibad/Ipes obteve apoio de governadores de São Paulo, Minas, Paraná, Rio Grande do Sul e Guanabara. Isso era decisivo do ponto de vista político e até militar, já que os governos estaduais dispunham de tropas profissionais mais numerosas e melhor equipadas para intervenções diretas do que as Forças Armadas – ressalta o coronel Caminha.

Tensão na expropriação de multinacionais

Um dos pontos em que as posições políticas se exacerbaram foi quanto às multinacionais. Jango assumiu já com a pecha de anti-Estados Unidos. Afinal, o cunhado dele, Brizola, no governo gaúcho, havia expropriado filiais de duas multinacionais norte-americanas, estatizando os serviços de energia e telefonia (criou a CEEE e a CRT).

Ganhou a imediata antipatia dos Estados Unidos, do empresariado e do capital transnacional, que temia que Jango fizesse as mesmas desapropriações em nível nacional. Jango elaborou projeto de nacionalização de minas de ferro (a maioria situada em Minas Gerais). E também apresentou projeto de Lei de Remessa de Lucros, que delimitava que empresas estrangeiras poderiam encaminhar para o Exterior somente 10% do seu lucro anual.

Às vésperas de cair, em 13 de março, Jango assinou outro decreto polêmico. O ato sujeitava refinarias de petróleo privadas à encampação por parte da Petrobras, o que causou repúdio no mundo capitalista. Entre os alvos estavam a planta de Manguinhos, do grupo Peixoto de Castro, e a Ipiranga (em Rio Grande, Rio Grande do Sul). Jango foi derrubado do governo duas semanas depois.

Economia em crise, inflação alta

A economia estava em uma situação precária, com uma inflação que chegou aos 54,8% em 1962 e se prolongou pelos anos seguintes. O governo lançou dois planos, o Trienal (em 1962) e o Plano de Ação Econômica do Governo (em 1964) para tentar estabilização monetária a curto prazo. O Plano Trienal continha um projeto de reforma agrária, o aumento dos impostos sobre as mais altas rendas e as chamadas “reformas de base” (basicamente: reestruturação do sistema fundiário), mas o governo não obteve apoio parlamentar para essas medidas e tentou emplacá-las mediante manifestações sindicais gigantescas de apoio aos projetos.

Reforma agrária: “Na lei ou na marra”

Os proprietários rurais, temerosos da reforma agrária, começaram a se armar para reagir. Ainda não existia o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas invasões de fazendas eram protagonizadas no Nordeste pelas Ligas Camponesas (instigadas pelo deputado socialista Francisco Julião e que ganharam força após a Revolução Cubana), por sindicatos de inspiração comunista e, no Rio Grande do Sul, pelo Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), de matriz trabalhista e que ocupou mais de uma dezena de áreas na região central do Estado.

As invasões a propriedades privadas levaram o Congresso a rejeitar o projeto de reforma agrária proposto pelo governo. Conforme Boris Fausto, em referência à onda de ocupações de fazendas, “a opção por iniciativas à margem da legalidade se reforçou quando, em outubro de 1963, o Congresso rejeitou a emenda constitucional que autorizava a desapropriação de terras sem prévia indenização”. Foi a época em que integrantes do governo Jango endossavam o slogan das Ligas Camponesas: “Reforma agrária, na lei ou na marra”.

Flávio Tavares nega que a reforma agrária fosse a concretização do comunismo no Brasil. Garante que os exemplos com que o janguismo e o brizolismo sonhavam eram implantados por países capitalistas.

– O Brizola tinha estado na Austrália e viu lá uma reforma agrária profunda. Os próprios norte-americanos fizeram uma reforma agrária no Japão, terminaram com o feudalismo, durante o plano MacArthur. Brizola citava isso.

Tavares recorda ainda que a ideia de não indenizar previamente os desapropriados era de um deputado de origem conservadora, Plínio de Arruda Sampaio, do Partido Democrata Cristão (mas que décadas depois iria para a esquerda). Sampaio propunha que as terras desapropriadas fossem indenizadas por meio de títulos da dívida pública, que passassem por correção monetária, sem necessidade de dinheiro vivo. O projeto não passou.

Em 13 de março de 1964, Jango assinou dois decretos que jamais foram implantados. Um estabelecia desapropriação de terras subutilizadas, sem necessidade de pagamento prévio pelas terras desapropriadas (como propunha Sampaio). Outro prometia a chamada “reforma urbana”, que dava prioridade aos inquilinos para comprar a residência que alugavam (na época, 30% dos brasileiros vivia em casa alugada). As propostas causaram temor entre proprietários de imóveis e minaram o governo.

Quartéis em ebulição

No último ano do governo Jango, as categorias de base das Forças Armadas promoveram diversas manifestações. A maioria por salários, outras pelo direito a posicionamento político (vetado nos regulamentos militares). Marinheiros inclusive reivindicavam o direito de casar (acredite, pela longa permanência no mar, eles não podiam contrair matrimônio). Aqui, três episódios:

Manifesto em julho de 1963

No Rio, oficiais do Exército divulgaram um manifesto defendendo melhores salários. O documento foi interpretado como rebeldia, o que levou o general Jair Dantas Ribeiro (Ministro da Guerra) a declarar que puniria com rigor os signatários, que chegavam a 1,8 mil. Acabaram sendo punidos sete oficiais que haviam se manifestado no Clube Militar. Isso ficou conhecido como Manifesto dos Majores (embora outros oficiais participassem).

Rebelião em setembro de 1963

Em Brasília, sargentos da Força Aérea Brasileira (FAB) e da Marinha se rebelaram contra o Supremo Tribunal Federal (STF), que lhes negou o direito de se candidatarem a cargo eletivo. Cerca de 600 cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha se apoderaram dos prédios onde estavam instalados o Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), a Estação Central da Rádio Patrulha, o Ministério da Marinha, a Rádio Nacional e o Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos (DTUI).

As comunicações da cidade com o resto do país foram cortadas. Um grupo de 150 cabos e sargentos tentou ocupar o Ministério da Aeronáutica, mas a recusa da guarda de plantão do edifício em aderir forçou-os a se retirarem. Tropas do Exército acabaram com a rebelião, prendendo 536 envolvidos. As lideranças do motim acabaram condenadas a quatro anos de prisão, ainda durante o governo Jango.

Revolta dos Marinheiros em março de 1964

No dia 13, durante comício de apoio a Jango na Central do Brasil (RJ), marinheiros estenderam faixas pedindo voto (direito que não tinham). No dia 20 daquele mês, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais (AMFNB), dirigida pelo cabo José Anselmo dos Santos, promoveu atos reivindicando melhores soldos.

Como o governo tornou ilegal a manifestação, os marinheiros e fuzileiros navais reuniram-se no Sindicato dos Bancários do Rio e exigiram a exoneração do ministro da Marinha.

Em 24 de março, o ministro Sílvio Borges de Sousa Mota mandou prender os líderes. A ordem não foi cumprida e, no dia seguinte, 2 mil praças da Marinha e dos Fuzileiros Navais se concentraram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos-RJ. A cúpula da Marinha mandou prender todos, mas o almirante Candido Aragão se negou a cumprir a ordem de prisão e foi demitido.

Uma intermediação de um líder do CGT, Dante Pellacani, contornou o problema e surgiu uma solução negociada, mas o ministro da Marinha se sentiu desprestigiado e pediu demissão. Ninguém foi preso. Aragão chegou a ser carregado nos ombros dos marinheiros, depois de reassumir o comando com autorização do presidente Jango. Os revoltosos foram mantidos em liberdade.

Em 30 de março, Jango aceitou um convite do Clube de Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar do Distrito Federal e foi ao Rio de Janeiro para discursar na sede do Automóvel Clube do Brasil. Presentes, aproximadamente mil sargentos saudaram o presidente. Caminha considera que a soma de manifestações e rebeliões no seio das Forças Armadas foi o gatilho para o início da derrubada de Jango, que aconteceu um dia depois do comício no Automóvel Clube.

– Em 20 de março de 1964, o general Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, expediu uma circular reservada alertando a oficialidade para as ameaças do comunismo e contra a indisciplina que atingia os quartéis. Ali o Jango já tinha perdido o controle da situação, porque hierarquia e disciplina são pilares no sistema militar – ilustra o coronel Caminha.

Antagonismo ideológico

Assim como em 1964, o cenário pré-eleições de 2022 mostrou um racha profundo no Brasil, acentuado nos quatro anos do governo Bolsonaro a partir de bandeiras polêmicas do ex-presidente, entre as quais acabar com a vacinação obrigatória e colocar em dúvida a legitimidade das urnas eletrônicas. Mas há uma grande diferença entre as duas épocas, defende Villa:

– Em 1964, os envolvidos tinham ideias para o Brasil. Havia ali Santiago Dantas, pela esquerda, e o Golbery, pela direita. A crise de 2022 é marcada pela ausência de propostas concretas. Bolsonaro não entende coisas que um aluno de Ensino Médio entende. É de uma pobreza ideológica não vista desde o marechal Deodoro da Fonseca, em 1889.

Minoria parlamentar e barganha fisiológica

Uma situação similar entre 1964 e 2022 é que tanto Jango quanto Bolsonaro tinham apoio relativo no Congresso. Jango até estava com um grande partido, o PTB, mas a oposição se uniu contra ele e o governo ficou minoritário no parlamento.

Já Bolsonaro estava com uma legenda (PL), que fez grande número de parlamentares, mas não o suficiente para aprovações maciças. Para isso ele teve de barganhar com os políticos de centro e direita que compõem o chamado “Centrão”.

Na hora em que propôs endurecer o regime e não aceitar a vitória de Lula, Bolsonaro só contou com fidelidade do PL, insuficiente para o apoio parlamentar pretendido.

Vaivém na economia

Na economia, o governo Bolsonaro teve três fases. No primeiro, houve pequeno crescimento, inflação sob controle e desemprego estável. A segunda fase começou com a pandemia, no início de 2020, e foi marcada por recessão, aumento do desemprego e da pobreza – que só não foi maior por causa do auxílio-emergencial.

No pós-pandemia, houve retomada de empregos, embora com alguma inflação devido à desorganização das cadeias produtivas e à guerra na Ucrânia, que encareceu o preço dos combustíveis. A recuperação, com crescimento econômico, queda do desemprego e aumento da renda, ocorreu no último ano do governo, acelerada por um grande pacote de gastos públicos e redução de tributos anunciado às vésperas da campanha eleitoral. Não o suficiente para Bolsonaro se reeleger.

Multidões radicalizadas

Desde 2013 o Brasil voltou a um cotidiano de manifestações políticas ruidosas, à esquerda e à direita. No segundo semestre de 2022, o barulho se intensificou quando Bolsonaro e apoiadores colocaram em dúvida a legitimidade das eleições e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Incitados pelo então presidente, muitos pregaram a instauração de um regime militar, para impedir a vitória da esquerda ou para derrubar Lula, caso fosse eleito (como foi). As manifestações culminaram com a depredação das sedes do Judiciário, do Executivo e do Congresso Nacional, em 8 de janeiro de 2023, causando prejuízo de R$ 22,8 milhões. Mais de 1,3 mil invasores foram presos e 145 já foram condenados.

Bloqueios nas estradas e nas portas dos quartéis

Horas após o TSE anunciar a vitória de Lula, apoiadores do candidato derrotado bloquearam estradas e assim permaneceram por cerca de 15 dias, provocando princípio de desabastecimento em algumas regiões. Eles também tentaram bloquear refinarias, mas não foram bem-sucedidos. Dali se foram para os quartéis, onde ficaram por mais de dois meses.

Empresários dispostos a impedir a posse de Lula

Antes das eleições de 2022, empresários apoiadores de Bolsonaro passaram a defender um golpe de Estado, caso Lula fosse eleito. Em agosto daquele ano, uma série de CEOs das áreas de comércio, indústria e serviços, reunidos no grupo de WhatsApp Empresários & Política, cogitou a ruptura democrática. Um deles, dono de shopping, escreveu:

“Prefiro golpe que a volta do PT, um milhão de vezes”. Outro, construtor, sugeriu desfile militar na Avenida Atlântica (RJ) para intimidar o STF. Outro, dono de indústria de vestuário, disse: “Golpe é o Supremo agir fora da Constituição! Golpe é a velha mídia só falar m.”. Após as eleições, o radicalismo aumentou, com apoio de líderes do agronegócio aos bloqueios de estradas.

Caminhões e máquinas de empresas agrícolas foram colocados nas rodovias, para impedir o tráfego. Investigações apontaram envolvimento de produtores rurais no preparo dos atos antidemocráticos, e parte deles foi indiciada por tentativa de golpe.

Agitação interna nas forças armadas

Escorado no fato de ter sido militar, Bolsonaro buscou ao longo dos quatro anos de gestão amparo nas Forças Armadas. Colocou mais de 5 mil militares, da ativa e da reserva, em cargos de confiança no governo. Usou várias vezes a expressão “meu Exército”. E fez mais: pediu ao Ministério da Defesa um estudo sobre a vulnerabilidade das urnas, alegando que elas não eram confiáveis. O resultado foi ambíguo: militares especialistas em cibernética responderam que não foram encontradas fraudes, mas que o sistema não é imune a elas.

No período pós-eleitoral, vários militares aderiram ao discurso de fraude eleitoral. Familiares de muitos deles ficaram na porta dos quartéis, pedindo que impedissem Lula de assumir. Os comandantes das Forças Armadas hesitaram em retirar os manifestantes.

Conforme mostram agora investigações da Polícia Federal, diversos oficiais graduados se mostraram dispostos a “virar a mesa” para impedir a posse de Lula.

As diferenças entre os dois períodos

Reunidos todos os fatores contextuais trazidos nas páginas anteriores, cabe a pergunta: por que não aconteceu em 2022-23 a ruptura da democracia? O historiador e militar Luiz Ernani Caminha Giorgis, mesmo sendo crítico da esquerda, vê diferenças em relação a 1964:

– Naquele ano, Jango estava perdendo o controle da situação. Atualmente o governo Lula ainda mantém o controle. Jango desrespeitou as Forças Armadas, aviltando a hierarquia e a disciplina. O atual governo não fez isso, ainda. E não guinou para o radicalismo. Na realidade, a cúpula militar decidiu não embarcar agora num projeto que era muito mais de uma facção política, a de Bolsonaro, do que um projeto de nação.

O historiador Marco Antônio Villa diz que, apesar de o agronegócio ter apoiado Bolsonaro em tudo, o mercado financeiro se manteve silencioso, porque as multinacionais não gostam de aventuras. E faltou, sobretudo, a adesão das Forças Armadas:

– Acho que os militares foram pragmáticos. Existiam condições objetivas de temperatura e pressão para se fazer uma derrubada de governo? Creio que eles constataram que não. Haveria um custo diplomático, um custo político e um custo humano. Isso, a guerra civil talvez… Porque haveria resistência.

Flávio Tavares crê que as instituições democráticas ainda são muito frágeis no Brasil, mas não há clima para desrespeitá-las, porque não há necessidade:

– Hoje, cada setor consegue alguns benefícios dentro das instituições. Uma emenda no Congresso, outra ajuda no governo para resolver os seus problemas. Custaria caro fazer a ruptura. E as Forças Armadas não aderiram ao golpe em 2022 porque a Guerra Fria já terminou. O cenário é outro.

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